CARPE DIEM!!!!!!!!!

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sexta-feira, 23 de julho de 2010

Desabafo de um transexual no Brasil...

Por um dia.

Imagine-se em um dia de sua vida. Você acorda e checa sua carteira. Lá existe uma carteira de identidade e ela não é a sua. No bolso lateral da carteira você encontra um cartão bancário e de crédito, você sabe a senha, mas ele não tem seu nome. Você toma café, despede-se da sua família e atravessa a portaria do seu prédio, aí o porteiro te estende o costumeiro bolo de contas a pagar, são de coisas que você consumiu ou vai consumir, mas não estão no seu nome.
Aí você precisa de dinheiro, é uma quantia que você não pode sacar no caixa eletrônico, você desiste de ir ao Caixa porque precisará se identificar e o funcionário olhará para o seu rosto e perguntará "de quem é este documento".
Você lembra que tinha que tirar uma amostra de sangue no Laboratório para monitorar sua saúde, mas ao chegar lá, o nome que consta na carteira do seu plano de saúde é outro, igual ao da identidade, mas diferente do seu rosto e do nome que será gritado pela funcionária que te chamará para o exame. Você chega até ela, pede para falar em particular, explica que é um transexual, que seu nome ainda não está ali, mas como ela pode ver, você é. Ela sorri perturbada e te atende. Batalha vencida.
Você chega no seu trabalho novo. O funcionário do RH te saúda, você quer uma informação, mas ele se perturba quando você diz o nome que ele deve lançar no sistema. Você explica constrangido, o balcão cheio, o despreparo.
Você começa a trabalhar, um funcionário traz um documento para que você assine. Você pergunta se é para uso interno, ele diz que não. Você se vê dividido, repetindo aquele nome que te soa estranho desde sempre, mas que é o único que consta em seus documentos.
Hora do almoço, você decide comer algo no restaurante da esquina. Como tirou pouco dinheiro do banco, decide pagar no débito, o garçom te olha de lado, não compreende porque está usando um cartão de banco que não é o seu.
Você lembra que tinha de comprar um material para o escritório. Era só uma grande caixa de arquivo, mas justo a papelaria em que você encontrou, a moça do caixa pede o CPF. É um sistema de cadastro que lança o número do CPF e aparece o nome do consumidor. O nome da sua carteira de identidade aparece na tela, você fica desconcertado, a funcionária te olha com visível desprezo.
Está quase na hora da viagem. Só dá tempo de deixar as coisas em casa, pegar a mala e ir para o aeroporto. Lá, depois de uma fila, a funcionária do check-in te pergunta de quem é o documento, você diz já mecanicamente que é um transexual, ela se perturba, leva sua identidade, conversa com a supervisora, aponta para você. Você diz que tem um problema auditivo e que não gosta de ir sobre a asa. Ao entrar no avião constata que ela te pôs com visível mau humor justamente sobre a asa.
Você vai direto ao evento, seu certificado da palestra sai no seu verdadeiro nome. Você sabe que se precisar utiilizá-lo formalmente vai ter problemas. Mas você já não se importa, ver seu próprio nome inscrito num papel é bom demais e as outras perdas são contornáveis. O dia acabou. Agora você chegou ao hotel de destino. Hora do check in. Novas explicações. Novos embaraços. No final, a cama macia. Felizmente.
Seu nariz coça. O corpo cansado anuncia uma gripe. Você não tomou vacina. Foi de propósito. Não queria ter que se explicar no posto de saúde. Assim como decide não votar na próxima eleição: se o país não reconhece sua cidadania todos os dias, não há porque torná-la exigência num dia protocolar.... torce para a gripe não piorar, para não adoecer do que todos os mortais adoecem, torce para não se acidentar como todos os mortais se acidentam, porque para além de todos os mortais, tem de dar outras explicações.
Agora imagine que essa experiência não dura um dia, mas anos. Agora imagine que dure a vida inteira.
Agora imagine que depois de milhas e milhas percorridas, um dia você vai a audiência com uma juíza. Seu advogado é realista, avisa que você será interpelado e deverá a partir daí, providenciar novas "provas" da sua condição. Você se prepara para o pior. Mas você chega lá, a escrivã, o promotor e a juíza sorriem. Para além do protocolo demonstram tranquilidade. Ela diz que vai te chamar pelo verdadeiro nome de cara. Você sorri. Ela diz que seu advogado fez um excelente trabalho de instrução. Irrepreensível. Diz que vê-lo é uma exigência a fim de que você ratifique seu pedido de mudança do nome, mas que já se considera satisfeita. Ela ouve seu minidiscurso com a garganta travada. Ela dita a sentença, a escrivã copia. O advogado e o promotor balançam a cabeça. Seu destino muda em 20 minutos. Ao sair, você nem acredita que acabou, mas acabou.
Aí você é tomado da simples e preciosa alegria de ser você mesmo e quer contar para tod@s @s amig@s que participaram, apoiaram, fortaleceram, acreditaram.
Aí você é tomado de uma fúria cívica e quer contar para todo mundo que pode ser diferente. Quer botar essa discussão num megafone, quer que ninguém mais tenha de passar por isso, e por isso escreve, e por isso apela para o envolvimento de tod@s nessa boa briga, que não se resolve numa sentença individual.

Rio de Janeiro, 20 de julho de 2010, 3a feira.
Guilherme Silva de Almeida





p.s.: carpe diem!

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